segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Quando a creche perde a piada

Quando a creche perde a piada
Texto: Vitória Ramos e Elsa Páscoa
24 Outubro 2008

As crianças são imprevisíveis. Podem mudar de comportamento e de atitudes de um momento para o outro, principalmente se, de repente, se vêem num ambiente diferente daquele a que estão habituadas. A ida para a creche ou jardim-de-infância, e a consequente reacção a essa mudança da rotina diária, é uma lotaria que os pais têm de enfrentar. Sem medos, pois eles não têm razão de ser.

Quando as crianças se deparam com uma nova realidade podem agir de variadas formas. É sabido que, no primeiro dia em que entram num infantário, os choros e gritos são esperados. Mas e quando essas manifestações surgem semanas depois do primeiro dia? Não se preocupe. É também normal e esse comportamento - que não se trata de forma alguma das chamadas «birras» - não deve levantar qualquer tipo de alarmismo.

O pediatra Henrique Galha garante que a rejeição das crianças a um novo ambiente pode surgir em qualquer altura, mesmo ao fim de um determinado período de tempo, em que os pais pensam que a habituação do seu filho já está mais do que ultrapassada. Até porque «a novidade pode ser motivo de interesse para qualquer criança». Isto é, encontrarem-se num espaço novo, com caras diferentes das que habitualmente vêem, aliado a todo um conjunto de possíveis brinquedos e distracções que desconheciam, pode despertar a curiosidade das crianças para a descoberta, para explorar todo um novo mundo que se abre diante dos seus olhos. Desta forma, é provável que demonstrem um sentimento de conforto e até alegria por esta fase diferente que inicia na vida. Um sentimento que, por vezes, dura apenas até que a novidade deixe de o ser.

«Há crianças que são muito curiosas e gostam de explorar coisas novas, mas quando o espaço deixa de ser novidade e percebem que estão ‘sozinhas’, no meio de outras crianças e de adultos que não os pais, mostram-se desconfortáveis», refere Sofia Silvério, psicóloga do Núcleo de Psicologia do Estoril. E acrescenta: «Em alguns casos, a criança parece adaptada ao local e aos colegas, mostra-se interessada e participativa nas actividades, mas, de repente, muda o seu comportamento, isolando-se, chorando quando vê os pais e recusando participar nas tarefas». Quando esta atitude é adoptada pela criança, a psicóloga não tem dúvidas em dizer aos pais para não se deixarem enganar, já que, «na maioria das vezes, é apenas uma tentativa da criança ‘tentar a sua sorte’ e voltar para casa, para junto do conforto dos pais».

NORMAL E FREQUENTE

Os casos em que a reacção negativa à creche ou ao infantário surge tardiamente não são tão difíceis de encontrar, nem tão raros como se possa pensar. Henrique Galha afirma que são vários os pais que o procuram regularmente, na tentativa de obterem uma explicação para a alteração de comportamento das suas crianças.

Sofia Silvério refere que a «frequência destes casos é relativa, uma vez que a grande maioria das crianças passa por uma fase em que se mostra mais desagradada com a escola, com reacções que sugerem alguma ansiedade quando estão na própria escola». Mas sustenta a afirmação com números gerais: «Poderá dizer-se que em todas as salas de creche e de jardim-de-infância, principalmente na sala dos dois e três anos, haverá duas ou três crianças com dificuldades de adaptação, exibindo talvez um deles dificuldades de adaptação tardias.»

E, apoiada na experiência que tem no Núcleo de Psicologia do Estoril, dá mesmo um exemplo do que aconteceu nas três creches em que trabalha: «Houve dois meninos com dificuldades de adaptação tardias. Um porque a situação em casa se alterou bastante, com o divórcio dos pais, e cerca de um mês depois começou a exibir comportamentos mais desajustados. E uma menina, porque, de tão tímida que era, não conseguia expor os seus sentimentos. Só após duas semanas começou a sentir-se confortável para chorar e extravasar a sua ansiedade».

Não é possível definir um prazo, como que uma data-limite para que as reacções tardias aconteçam. Nunca é cedo demais assim como nunca é tarde demais para as crianças mudarem de comportamento em relação ao infantário.
Em média, considera-se que, durante os primeiros dois meses, a criança está em fase de adaptação à escola e às novas realidades. Assim, Sofia Silvério afirma que «se passado um mês o menino começa a exibir um tipo de comportamento desajustado, talvez não se possa falar num caso de uma criança que estava adaptada e que depois mudou as suas atitudes.»

Pelo contrário, pode dar-se o caso de «a criança nunca se ter adaptado» e, consequentemente, não se sentir confortável para «mostrar os seus sentimentos a pessoas que não eram ainda ‘merecedoras’ da sua confiança». Por outro lado, «podemos falar de crianças que interiorizam os seus sentimentos e que apenas os exteriorizam quando o ‘copo transborda’». Ou ainda de crianças que só tardiamente se aperceberam de que aquela mudança na sua vida é definitiva, e não apenas temporária, como por exemplo quando passaram férias com os avós.

PAIS IMPORTANTES

«A rejeição ‘tardia’ a um novo ambiente é mais comum nas crianças com mais de dois anos, pois já têm memorização e uma concepção individualista da realidade», explica Henrique Galha. Nos bebés de colo, a situação não é tão recorrente, uma vez que nestas idades as crianças estão ainda alheadas da realidade, não tendo perfeita noção do que as rodeia.
Para o pediatra, «os pais, principalmente as mães, terão de assumir um papel preponderante na gestão destas situações».

Até porque estamos claramente perante casos que de patológico nada têm, como o pediatra faz questão de deixar bem claro: «Não se trata de forma alguma de uma patologia, mas sim de uma reacção normal da criança.»
Como reacção normal e espontânea que é, não é possível prever o momento em que pode surgir. «Cada criança é uma individualidade própria e o ajuste diário de emoções é sempre diferente, pelo que a instabilidade emocional faz parte da habituação da criança a qualquer meio estranho», refere Henrique Galha.


Assim, o médico aconselha os pais a, «já que não podem estar presentes fisicamente, manterem o contacto permanente, com conversas diárias com os educadores para se aperceberem das mudanças ocorridas na criança para que se colmatem as diferenças.»

Opinião idêntica mostra Sofia Silvério, que defende que os pais desempenham um «papel fundamental na forma como os filhos reagem às mais variadas situações do dia-a-dia». E o mais importante é não cederem à tentação de compensar o tempo em que deixaram o filho num ambiente que não o familiar. «Esta compensação é nefasta para os pais, porque estimula o sentimento de culpa, e para os filhos, uma vez que dificulta a sua adaptação e não estimula a autonomia e independência, pois desejam perpetuar esses momentos junto dos pais», explica. A confiança no infantário é, então fundamental: «Os pais não devem mostrar a sua ansiedade por ‘largarem’ os filhos numa creche, uma vez que se os estão a deixar naquele local foi porque, após uma longa procura, o elegeram como um local de confiança para cuidarem e educarem as suas crianças», adverte a psicóloga.


Àqueles pais que não podem ouvir os filhos chorar, ou vê-los um pouco menos contentes, o pediatra Henrique Galha faz questão de lembrar que na vida de uma criança há sempre «os períodos em que está a chorar e os períodos em que está a sorrir». É algo inevitável, que nem o pai mais dedicado e preocupado consegue afastar do crescimento do seu filho. A única coisa que esse pai dedicado e preocupado consegue, pode e deve fazer é, aconselha o pediatra, «agir de forma a garantir que os períodos dominados pelos sorrisos se prolonguem, superando os choros e os momentos menos felizes».

adaptação sem dramas

Uma boa adaptação ao infantário depende de vários factores, como sejam as características pessoais de cada criança, a relação familiar, a (in)dependência que os pais promovem nos filhos e a forma como os próprios pais gerem a ansiedade provocada por este momento de separação. É por isso que os pais devem adoptar certas atitudes para que o processo de integração ocorra sem problemas. Aqui ficam as dicas:

- Pais ansiosos e chorosos no momento da separação do filho e da “entrega” à educadora geram crianças ansiosas e desconfiadas na capacidade protectora daquela pessoa;
- Mesmo em bebés, os pais devem sempre confortar a criança, dizendo-lhe que a separação é apenas temporária e garantindo-lhe que no final do dia a virão buscar. Nesta altura, cumprir a palavra é fundamental;
- Os pais devem explicar à criança o que vai fazer, as razões pelas quais o deixam na escola e o que ele poderá fazer ao longo do dia;
- Os pais devem mostrar interesse pelo dia-a-dia do filho;
- Os pais devem estar preparados para ouvir a gritaria dos filhos. Não devem protelar a saída com mais um abraço e mais um beijinho e mais uma espreitadela porque o filho ficou a chorar. A responsabilidade deve agora ser da educadora;
- No final do dia, os pais devem elogiar e valorizar o que a criança fez de bem ao longo do dia e mostrarem-se alegres e satisfeitos por este momento de partilha e de reencontro, mas sem enfatizarem excessivamente a separação;
-Não se deve cair na tentação de retirar a criança da escola quando mostra dificuldades de adaptação. O lema é persistir e nunca desistir;
- Como forma de prevenção, os pais devem habituar os filhos desde cedo a estarem sozinhos e a passarem algum tempo com outras pessoas. Antes da entrada na escola, devem preparar os filhos para a separação, motivá-los para a mudança, falando-lhes dos aspectos positivos da creche e levando-os ao local para que gradualmente se vão habituando.


«A família também entra na creche»

Isabel Cristina é educadora de infância há mais de década e meia e por várias vezes teve de gerir «situações em que uma criança, por volta do mês ou mês e meio após o início do ano lectivo, iniciou um processo profundo de rejeição».
Desorientados, «os pais procuram saber logo o que se alterou no quotidiano da sala. É aí que Isabel Cristina procura «fazer perceber que estas situações nada têm a ver com a creche propriamente dita». É sua convicção que «no momento em que a criança percebe que passar os dias connosco é uma rotina e não uma situação excepcional, por muito divertida e estimulante que seja, pode achar que foi ‘enganada’ e reagir em conformidade.»

O diálogo com a família torna-se essencial: «Costumo dizer que não é só a criança que entra e tem de se adaptar à creche, é também toda a família», diz Isabel Cristina. Por isso mesmo, a educadora procura que os adultos «controlem os seus níveis de ansiedade», promovendo o contacto permanente. «Digo aos pais que, se os ajudar a sossegar, podem telefonar-me 20 vezes ao dia e eu cá estarei para os ouvir e para lhes dizer como o filho está».

Ama domiciliária na mesma instituição, Glória foi mãe pela primeira vez aos 17 anos e pela segunda vez aos 35. Por isso, acredita que possui uma sensibilidade apurada para «compreender as diferentes personalidades dos pais» dos meninos que ficam em sua casa. «Sei qual é a angústia de colocar o nosso bem mais precioso na mão de estranhos e é por isso que uso de grande diplomacia nos casos em que as crianças reagem negativamente quando chegam pela manhã», afirma.

Glória acredita que «as crianças reflectem muito a atitude dos pais. Quanto mais serena ela é, mais calma e disposta a ficar comigo a criança também se mostra», considera, adiantando que talvez também seja vantajoso o facto de receber, no máximo e por imposição legal, quatro crianças em simultâneo. «A falta de informação traz má-vontade», acredita Glória, que adoptou o princípio de «abrir a casa à família das crianças» que tem «liberdade para ver tudo e fazer todas as perguntas que entende, não só no início do ano como a qualquer momento». E isso torna-se importante «quando os problemas de adaptação se arrastam no tempo ou surgem repentinamente». Quando a separação diária é dolorosa, tanto para a criança como para os adultos, Glória procura colocar-se «no papel daqueles pais e pensar no que eles fariam nessa circunstância» já que isso ajuda a ultrapassar as fases difíceis «mais rapidamente», conclui.


Retirado da revista Pais e Filhos

1 comentário:

Elsa Filipe disse...

Olá. Visitei o seu blog e gostei do que vi. Está de parabéns pelo trabalho.

Sobre esse artigo, a Creche é realmente um bicho de sete cabeças, ou oito, ou nove... uma por cada menino que temos na sala, tão diferentes, tão emotivos e especiais... e uma por cada dia, por cada acordar, nosso e deles também...

Visita também o meu blog

doiscontigo.blogspot.com

e te convido a partilhar as tuas opiniões sobre a creche no artigo sobre o início do ano lectivo...

bjs